O novo marco legal das agências reguladoras brasileiras
Depois de um longo inverno foi sancionada a Lei n.º 13.848, de 25 de junho de 2019 (“Lei das Agências Reguladoras”), que dispõe sobre a gestão, a organização, o processo decisório e o controle social das agências reguladoras, alterando diversas normas relacionadas a essas entidades da Administração Pública Federal.
Estão abrangidas pelo novo marco legal todas as agências reguladoras atualmente existentes em âmbito federal, quais sejam a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), a Agência Nacional de Águas (ANA), a Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq), a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), a Agência Nacional do Cinema (Ancine), a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) e a recém-criada Agência Nacional de Mineração (ANM), bem como outras que venham a ser criadas pela União.
O principal objetivo da norma aprovada é, justamente, criar um regime uniforme, na medida do possível, para disciplinar a atuação de todos os órgãos com função regulatória que possam ser qualificados como “agências reguladoras”.
Pontos de destaque
Em sua parte introdutória, a Lei n.º 13.848/19 começa por normatizar uma questão que, até então, suscitava certa controvérsia doutrinária: os elementos que caracterizam a “natureza especial” das agências reguladoras. A interpretação que se poderia extrair dessa expressão foi pacificada pela lei, de modo que a natureza especial passa a ser expressamente caracterizada “pela ausência de tutela ou de subordinação hierárquica, pela autonomia funcional, decisória, administrativa e financeira e pela investidura a termo de seus dirigentes e estabilidade durante os mandatos, bem como pelas demais disposições constantes desta Lei ou de leis específicas voltadas à sua implementação” (art. 3º, caput).
Já no seu início (art. 3º, §3º), a norma estabelece a obrigatoriedade de as agências reguladoras adotarem práticas de gestão de riscos e de controle interno, bem como de divulgarem os seus programas de integridade, com o objetivo de promover a adoção de medidas e ações institucionais destinadas à prevenção, à detecção, à punição e à remediação de fraudes e atos de corrupção, algo que hoje não é atendido por parte delas.
No capítulo primeiro, que trata do processo decisório das agências reguladoras, destacamos o estabelecimento da necessidade de observância dos princípios da razoabilidade e proporcionalidade (art. 4º) e da motivação (art. 5º) em todas as atividades por elas empreendidas. Em que pese essas duas obrigações já constarem da Lei de Processo Administrativo Federal, temos como positiva a sua ampliação, que também servirá – como apontaremos abaixo – para as análises técnicas produzidas pelas agências, inclusive para a produção de atos normativos (mencionados expressamente no art. 5º).
É relevante, ainda, a obrigatoriedade de publicização e transmissão via internet das reuniões deliberativas do Conselho Diretor (ou da Diretoria Colegiada, conforme o caso), prática que já era comum em uma parte das agências, por exemplo, na ANATEL, na ANAC e na ANEEL, embora ainda inexistente em outra parcela.
A nova Lei estabelece, também, a necessidade de realização de Análise de Impacto Regulatório (“AIR”)v nas propostas de adoção e/ou alteração de atos normativos de interesse geral.
A positivação dessa obrigação assegura maior transparência e controle do exercício da competência normativa pelas agências nos respectivos setores regulados, deixando para posterior regulamento a exclusão de hipóteses específicas de dispensa de sua elaboração – o que torna a elaboração prévia de Relatório de AIR, enquanto antecedente necessário de uma decisão sobre regulação, a regra geral, podendo ser excepcionada apenas nas hipóteses estritamente previstas no regulamento..
Além disso, vale destacar o relevante papel conferido aos instrumentos de participação popular nos processos de tomada de decisões pelas agências reguladoras. Isto porque a Lei n.º 13.848/19, de um lado, determina a submissão obrigatória de todas “as minutas e as propostas de alteração de atos normativos de interesse geral dos agentes econômicos, consumidores ou usuários dos serviços prestados” à consulta pública (que deve ter prazo mínimo de quarenta e cinco dias, nos termos do art. 9º), e, de outro, autoriza que as agências reguladoras convoquem audiência pública “para formação de juízo e tomada de decisão sobre matéria considerada relevante” (art. 10).
Por fim, a norma também confere às agências reguladoras a liberdade de adotar outros meios de participação dos interessados, diretamente ou por meio de associações (art. 11).
No capítulo segundo que trata da prestação de contas e do controle social, o novo marco legal detalha a forma de comprovação do cumprimento da política pública setorial e dos planos estratégico e de gestão a que estão submetidas as agências reguladoras. Essa prestação de contas deve ser feita por meio de relatório anual encaminhado ao ministro de Estado da pasta a que estiver vinculada, ao Senado Federal, à Câmara dos Deputados e ao Tribunal de Contas da União, no prazo de até 90 dias após a abertura da sessão legislativa do Congresso Nacional.
A norma também estabelece a obrigatoriedade de instituição de ouvidorias em todas as agências reguladoras, com a finalidade de: (i) zelar pela qualidade e pela tempestividade dos serviços prestados; (ii) acompanhar o processo interno de apuração de denúncias e reclamações dos interessados; e (iii) elaborar relatório anual de ouvidoria sobre as atividades da agência. A lei prevê que o ouvidor será independente da estrutura da respectiva agência, sendo sua nomeação ato privativo do Presidente da República, com a prévia aprovação do Senado Federal (art. 23).
Por fim, os capítulos III, IV e V da Lei n.º 13.848/19 tratam dos instrumentos de interação e articulação das agências reguladoras entre si, com os órgãos de defesa da concorrência, do consumidor e do meio ambiente, bem como em relação às agências reguladoras ou órgãos de regulação estaduais, distritais e municipais. No que diz respeito à articulação entre agências e órgãos de defesa da concorrência, a lei opta por uma delimitação de competências relativamente objetiva, de modo a atribuir expressamente ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (“CADE”) a aplicação da legislação de defesa da concorrência nos setores regulados, por meio da análise de atos de concentração e da instauração de processos administrativos para apuração de infrações à ordem econômica, restando às agências as funções de fornecimento de subsídios à atuação do CADE e comunicação de atos que possam configurar infrações.
De todo modo, deve-se destacar que essa delimitação não afasta por completo possíveis conflitos de competência que ainda possam advir da relação entre as agências e o CADE.
Ao tratar da interação entre agências reguladoras, por sua vez, a norma autoriza uma prática que já é realidade, isto é, a edição de atos normativos conjuntos para disciplinar determinadas matérias pertinentes a mais de um setor regulado. A título de exemplo, seria possível mencionar a Resolução Conjunta Aneel-Anatel-ANP n.º 1/1999, que regulamenta o compartilhamento de infraestrutura entre os setores de energia elétrica, telecomunicações e petróleo, a Resolução Conjunta Anatel-Aneel n.º 4/2014, que fixou preço de referência ao compartilhamento de postes entre distribuidoras de energia elétrica e prestadoras de serviços de telecomunicações, ou então a Resolução Conjunta ANA-Aneel n.º 03/2010, que estabeleceu as condições e os procedimentos a serem observados pelos concessionários e autorizados de geração de energia hidrelétrica para a realização do monitoramento hidrológico.
No que tange à interação com os órgãos de defesa do consumidor, a norma parece ter apresentado uma solução vaga, de modo distinto do que se verifica na relação entre as agências e os órgãos de defesa da concorrência. Nesse sentido, não são definidas as matérias que ficariam a cargo de um ou outro ente, atribuindo às agências a obrigação de “zelar pelo cumprimento da legislação de defesa do consumidor, monitorando e acompanhando as práticas de mercado dos agentes do setor regulado” (art. 31). Este é um ponto que poderia ter sido melhor equacionado pela lei, tendo em vista eventuais conflitos de competência na aplicação do direito do consumidor aos setores regulados, destacando-se como uma alternativa possível, por exemplo, a disciplina conferida pelo Decreto n.º 2.338/1997 (Regulamento da Lei Geral de Telecomunicações) a essa matéria, de modo a priorizar a atuação da Anatel sobre os órgãos de defesa do consumidor.
Também merece destaque a já reconhecida competência das agências para firmar termos de ajustamento de conduta (“TACs”) com pessoas físicas ou jurídicas, suspendendo a aplicação de sanções administrativas (art. 32, §1º). Muito embora se trate de instrumento já adotado por grande parte das agências, a sua previsão legal expressa pode representar um incentivo à implementação prática dos TACs, na medida em que algumas dificuldades foram identificadas na formulação desses termos.
Quanto à interação entre as agências federais e agências estaduais, municipais ou distritais, é interessante atentar para a possibilidade de descentralização das competências fiscalizatórias, sancionatórias e arbitrais, por meio de acordo de cooperação – como se pode notar, a competência normativa não está abarcada. Dessa forma, caso haja a delegação de competência, a agência reguladora federal se torna a instância superior e recursal das decisões tomadas no exercício da competência delegada (art. 34, §7º). Esta nos parece uma medida que pode resultar em maior eficiência na fiscalização e sancionamento no setor regulado, tendo em vista os potenciais ganhos de escala e maior granularidade no exercício dessas competências, embora entendamos que essa delegação deva ser objeto de avaliação criteriosa a respeito de sua aplicação.
Portanto, desse panorama geral dos aspectos relacionados à articulação institucional entre as agências reguladoras e demais figuras integrantes da Administração Pública, é importante que se compreenda que a autonomia efetiva das agências reside não somente no reconhecimento de sua “natureza especial” – enquanto título que garante sua autonomia formal –, mas também nas dinâmicas de sua interação com outras autoridades.
A previsão de regras para disciplinar a relação entre as agências e demais atores institucionais se mostra salutar, não limitando a autonomia dessas entidades ao plano formal. Esse desenho institucional, no entanto, também não constitui garantia absoluta de sua autonomia prática, que depende de uma análise dinâmica da real atuação desses atores e das agências em si, diagnóstico que poderá ser aferido com maior precisão a partir da entrada em vigor do novo marco legal.
A composição das agências e os vetos presidenciais
Em primeiro lugar, nota-se que a norma uniformizou a composição do Conselho Diretor, ou Diretoria Colegiada, conforme for o caso, das agências, ao alterar os respectivos marcos legais de cada autarquia e estabelecer um quadro de 5 Conselheiros/Diretores (sendo um deles o Conselheiro-Presidente/Diretor-Geral), todos com 5 anos de mandato não coincidentes, vedada a recondução.
Vale ressaltar, no entanto, a grande polêmica que orbitou o sancionamento da lei pelo Presidente da República, relacionada aos vetos presidenciais ao dispositivo que estabelecia a obrigatoriedade de processo de pré-seleção de uma lista tríplice, por uma comissão de seleção, anteriormente à nomeação do Presidente.
Em suas razões de veto, o Presidente sustenta que “tal procedimento prévio obrigatório é inconstitucional por perpetrar violação ao princípio da separação dos poderes, por excluir a atuação do chefe do Poder Executivo na iniciativa de livre indicação dos dirigentes das agências reguladoras, subvertendo a própria natureza de autarquia especial, nos termos dos precedentes do Supremo Tribunal Federal (v.g. ADI 1.949, Rel. Min. Dias Toffoli, Plenário, j. 17.09.2014)”.
Ao menos dois argumentos poderiam ser problematizados nas razões de de veto mencionadas: (i) a violação ao princípio da separação de poderes; e (ii) a subversão da natureza especial das agências, com menção a precedente do STF.
Sobre o primeiro ponto, a nosso ver, não haveria qualquer violação à separação de poderes que pudesse ser depreendida da pré-seleção de uma lista tríplice, em virtude da inexistência de exclusão da atuação do chefe do Executivo, que ainda seria o titular da competência para a tomada da decisão final de nomeação dos dirigentes, como também em razão de exemplos concretos, que já podem ser verificados na prática. A esse respeito, poderíamos mencionar a previsão do quinto constitucional nos Tribunais Regionais Federais, em que a Ordem dos Advogados do Brasil (“OAB”) e o Ministério Público enviam listas sêxtuplas ao tribunal, que forma uma lista tríplice e a encaminha ao Presidente para escolha do desembargador federal
No exemplo mencionado, a formação da lista tríplice constitui mecanismo destinado à garantia do caráter democrático da nomeação. No dispositivo vetado pelo Presidente em relação às agências, tratava-se de mecanismo com o objetivo de assegurar nomeações de caráter técnico, tendo um processo de seleção mais rigoroso que antecedesse a nomeação em si, bem como de assegurar a transparência no preenchimento desses cargos, aspectos que poderiam contribuir para uma profissionalização ainda maior das agências e teriam o potencial de evitar, ou reduzir, o chamado “loteamento político” desses cargos.
No atinente ao segundo aspecto, entendemos que há um contrassenso entre as razões de veto e a própria definição de “natureza especial” estabelecida pela lei, que nada tem a ver com a autoridade que nomeou o dirigente, mas com a ausência de subordinação hierárquica, a autonomia funcional, decisória, administrativa e financeira, bem como com o mandato fixo dos dirigentes. Além disso, o precedente do STF mencionado pelas razões também não nos afigura como baliza jurisprudencial para o veto.
O julgado cuida de controle de constitucionalidade de lei estadual que estabelecia a necessidade de aprovação da Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul para a nomeação e destituição dos dirigentes da Agência Estadual de Regulação dos Serviços Públicos Delegados do Rio Grande do Sul (“AGERGS”). Nesse caso, o Supremo decidiu pela constitucionalidade da submissão da nomeação à Assembleia Legislativa, que entendeu estar em plena conformidade com a Constituição Federal, declarando inconstitucionais apenas as determinações relativas à destituição dos dirigentes, que violariam a separação de poderes, reconhecendo também a incompatibilidade da destituição discricionária pelo chefe do Executivo com a natureza especial das agências.
Como tem sido noticiado recentemente, é possível que os referidos vetos sejam reavaliados pelo Congresso Nacional, podendo inclusive serem derrubados, nos termos dos §§ 4º e 5º do art. 66 da Constituição Federal, em votação conjunta, por maioria absoluta, de Deputados e Senadores, computados separadamente.
Conclusão
Em síntese, a Lei n.º 13.848/19 atende a uma demanda antiga do meio jurídico de edição de uma lei quadro das agências reguladoras, uniformizando sua estrutura e positivando boas práticas, em especial a AIR, os instrumentos de participação popular (i.e., consulta e audiência pública) e a transmissão das reuniões de diretoria.
Além disso, a disciplina da relação entre as agências e demais atores institucionais também constitui um avanço no desenho estabelecido pelo novo marco legal, compreendendo que a autonomia dessas entidades não reside apenas em sua natureza de autarquia especial, mas também na dinâmica de suas interações com outros atores.
No entanto, os vetos realizados pelo Presidente da República, sobretudo aquele relativo à formação de uma lista tríplice previamente à nomeação dos dirigentes, demonstram razões frágeis, inibindo uma tentativa promissora de tornar o preenchimento desses cargos mais criterioso.
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Por: Joaquim Nogueira Porto Novaes – Gabriel Carmona Gonçalves – Pedro Henrique Espagnol de Farias
Fonte: Jota
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